Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
(Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa)
A vida de um deputado do chamado baixo-clero, categoria em que 9,5
entre dez parlamentares se enquadram, pouco difere da de um
representante comercial um caixeiro-viajante. O que ele faz, do
amanhecer ao anoitecer, é percorrer incansavelmente ministérios
pleiteando a liberação de recursos das emendas que conseguiu emplacar no
Orçamento da União.
Essas emendas têm várias finalidades. Uma delas é fazer dinheiro. O
deputado e o prefeito constroem arranjos financeiros com empreiteiros
desonestos para a execução de obras e o desvio de parte dos recursos
para seus próprios bolsos.
Mas há que se reconhecer que elas também atendem a demandas de uma
parcela da população que está distante da burocracia federal e à qual os
ouvidos do Planalto são moucos e insensíveis.
Historicamente, a liberação ou o contingenciamento dessas emendas
decorre da avaliação que o governo faz do comportamento do parlamentar
em plenário. Se ele é subserviente, ”leal”– ainda que na oposição — e
cumpre seu papel na manada governista, é aquinhoado generosamente.
Caso se mostre independente demais ou eventualmente se insurja contra
as orientações repassadas à base, é tratado apenas a pão e água.
Muitas vezes termina seus dias humilhado nas antessalas de Brasília,
sem ao menos conseguir ser recebido pelo sub do sub que tem a caneta na
mão.
É por tudo isso que ao governo provoca calafrios a aprovação da PEC
que torna o cumprimento dessa fração do orçamento impositivo. Sem
controle sobre as liberações, o Planalto perde muito mais do que as
torneiras orçamentárias. Perde seu maior instrumento de controle ou,
caso prefira, de coação sobre a vontade – ou a consciência — dos
deputados e senadores. É isso o que está em jogo.
Com a liberação compulsória das emendas, os congressistas estarão
muito mais à vontade para votar, se quiserem, de acordo com suas
próprias convicções ou conveniências. Estarão livres do torniquete que,
ao amordaçar suas consciências, abre o caminho para a corrupção
deslavada que infesta o Poder central.
Anestesiar consciências, promover o voto de conveniência por alguns
trocados, é essencialmente uma forma de corrupção institucional que, no
Brasil, passou a ser vista como normal e até desejável, já que sempre
houve lucros de parte a parte.
Com o orçamento impositivo, almas que ainda podem ser resgatadas do
purgatório patrimonialista certamente se sentirão mais à vontade para
voltar à luz do dia e atuar com algum norte ético ou reatar vínculos de
lealdade com o eleitor, este sim o grande perdedor do troca-troca
francisco imoral e indecente que domina há anos o Congresso Nacional.
Se vai haver ou não uma melhora na qualidade da representação
parlamentar, o tempo dirá. É provável que os vícios dessa cultura tenham
feito estragos éticos insanáveis. Mas eles certamente terão mais tempo
para se dedicar a algo que a maioria nem sabe direito como funciona: a
elaboração de leis, a atuação em plenário e a fiscalização do Poder
Executivo.
Pelo menos um mérito há que se reconhecer nesse projeto. Ele acaba
com aquela figura abjeta do deputado sempre com o pires na mão que, como
um pedinte, vai esmolar na Esplanada.
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